A imagem do eu maior que o próprio eu | Considerações sobre o texto O feio, de Marius von Mayenburg

De repente, Lette recebe uma constatação de seu chefe, sem entender muito bem:

Scheffler - O seu nariz não agrada, se é que entende uma piada. Não entende? Bem, é compreensível. Com essa cara o senhor não vai conseguir vender nada.

Lette, descrito no início do texto simplesmente como "o feio", continua sem entender. Ao que sua esposa Fanny, então, acrescenta de forma direta e simples:

Fanny - Eu pensei que soubesse. Sempre admirei o jeito nobre que você lida com isso. 
Lette - Com o quê? 
Fanny - Com o fato de ser feio pra caramba.

Pois é, não resta dúvida, Lette é "feio pra caramba". E é a partir dessa feiura crua, sem relativizações, que o dramaturgo alemão Marius von Mayenburg vai abordar complexas e inusitadas questões do poder da imagem na sociedade contemporânea e seu potencial de lucro, tanto nos ganhos financeiros das empresas quanto nos ganhos simbólicos dos indivíduos. Ser feio dá prejuízo? Ser diferente do padrão é um perigo?

Tudo ia bem para o individuo inconsciente de sua feiura. Lette tem um bom emprego, casou-se, acabou de criar um novo produto que vai impulsionar sua carreira, tem planos e está otimista. Mas um conflito o faz ter que encarar a "realidade" ("Você é feio. É a realidade. Ninguém vai pensar diferente quando olhar para você", como diz sua esposa Fanny): ele não serve para vender o conector que ele mesmo criou em nome da empresa.

Fanny - Mas não é por causa do conector, é porque a sua cara é tão catastrófica que não dá para vender coisa alguma com ela, tanto faz o quanto sensacional seja a coisa. 
Lette - Catastrófica. 
Fanny - É. 
Lette - Você quer dizer como uma catástrofe. 
Fanny - É.

O protagonista descobre que sua cara é uma catástrofe e que não serve em absoluto para vender o conector. Não basta o conector ser sensacional, não basta ser ele seu genial inventor, não basta suas capacidades e nem o fato de ele ter aquela famosa "beleza interior". Lette é feio. E ponto.

Marius von Mayenburg aborda a questão de forma tão direta e drástica que a história toda ganha um ar absurdo, mas sem deixar de estar embasada na realidade. Todas as personagens resolvem dizer a verdade, expor de fato o que acham sobre Lette, ser sinceras. E a sinceridade pode ser ao mesmo tempo cômica e insuportável. E mudar totalmente a forma de uma pessoa se enxergar no mundo.

Nosso querido Lette não se resigna e vai em busca de resolver seu conflito. Se o problema é a feiura, que ela se transforme em beleza, então! Uma cirurgia plástica acaba trazendo novas questões a trama: afinal a beleza pode ser comprada? Pode ser esculpida, como arte, no rosto de alguém por um cirurgião habilidoso? Qual é o padrão de beleza que aceitamos? Cada vez mais somos uma sociedade de narcísios incuráveis?

Lette se transforma. Ele não problematiza a subjetividade dos olhares que o apontam como feio. Ele não luta por impor sua imagem de feio sobre um mundo que só aceita os bonitos. Ele se adapta. Ele se torna lindo. Não qualquer lindo, mas o mais lindo de todos. A face perfeita. O vendedor ideal e eficiente de conectores. O vendedor ideal e eficiente de si mesmo. Um perfeito narcísico, que ama sua própria imagem e que quer ver em todos a sua própria perfeição.

Karlmann - Eu estava sentindo minha falta. 
Lette - Eu também estava sentindo saudade de mim. 
Karlmann - Eu de mim também, fiquei pensando em mim o tempo todo, desde a primeira vez que eu me vi.

Todos se tornam Lettes. Todos se tornam lindos. Todos se encaixam no mesmo padrão de perfeição construída pelas mãos mágicas de um cirurgião artista. Todas as faces vão se tornando lindas e iguais. A diferença é eliminada. Todos são belos e todos se reconhecem uns nos outros, em uma infinita masturbação imagética em que o mundo inteiro é a minha imagem e semelhança. O igual se replica e o capital global realiza sua utopia-fetiche: todos são o melhor e mais vendável produto. Todos vendem a si mesmo. E todos compram a si mesmo. A aparência ganha status de ser a própria realidade. A imagem se torna a verdade.

Karlmann - Como sou cheiroso. 
Lette - Como eu. 
Karlmann - E eu. 
Lette - E eu. 
Karlmann - E eu. 
Lette - E eu. 
Karlmann - E eu. 
Karlmann e Lette - Eu me amo.
(Os rostos se aproxima. Beijam-se)

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