A empatia em coma | Considerações sobre o texto Carícias, de Sergi Bebel

Para um artista de teatro, o que mais chama a atenção no texto "Carícias" é a estrutura construída cuidadosamente pelo dramaturgo catalão Sergi Bebel. As personagens se unem de forma delicada entre as cenas, evidenciando uma trama (também no sentido artesanal) composta por elementos não hierarquizados que permitem a fruição da obra como a contemplação de um quadro: pode-se ver o todo, de longe, e também se aproximar e ver de perto cada detalhe, cada traço de tinta que compõe o todo. Carícias mostra a possibilidade de toda a humanidade estar ligada por um delicado e (quase) invisível fio de afeto. Em outras palavras, estamos todos ligados por dores e amores. 

SENHORA Só peço um minuto. Estou tão sozinha, minha filha, e tem tantas coisas que eu penso... Desde o dia que você foi embora, a casa não é mais o que era. É verdade, antes era um inferno, uma batalha constante: brigas, gritos, mau humor, angústias, choros, tensões. Eu tenho que reconhecer que talvez tenha sido minha culpa que a gente tenha declarado guerra uma com a outra, uma guerra pequena, ainda que hostil, a base dos mínimos gestos e de mínimas palavras e de silêncios eternos. Se a guerra mais cruel é a guerra entre as mulheres, é mais cruel ainda entre uma mãe e sua filha. Mas agora que você não está, tenho tanta saudade de você! 

A essa estrutura bem construída e dramaticamente interessante, se soma uma violência crua e a incapacidade de comunicação das personagens. Como as duas velhas que contam a história da sua vida, praticamente em dois monólogos distintos, para depois se surpreenderem: "Não sabia que você estava aqui." e em seguida, depois de confissões e até de um beijo na boca, se esquecem com quem falam: "É que eu não me lembro de você." Ou então como o velho morador de rua, alucinado, já incapaz de dialogar com as pessoas enquanto insiste em uma fala auto-centrada confusa e repetitiva, como a de uma mente fechada e viciada nos mesmos pensamentos de sempre, incapaz de se deixar afetar pelas lembranças e conselhos da velha que o quer levar para um lugar melhor: "Porque não vem comigo para o asilo?". Ou ainda a mãe e o filho que encaram um jantar tedioso, incapazes de falar o que sentem e querem, o que leva a mãe a "roubar" dinheiro da carteira do filho e este, mesmo vendo, finge não ver e pacientemente, em outro momento oportuno, lhe pergunta: "Quanto você quer?" e o café, tão prometido pela mãe no decorrer do diálogo, acaba nem ficando pronto: "O café você toma na rua, não é verdade?"

Essa falta de percepção do outro, a incapacidade de ouvir o outro, e até o próprio esquecimento do outro não são aleatórios no texto de Bebel. Juntos, no belo tecido geral na peça, insistem por revelar uma humanidade decadente e cada vez mais egoísta, com seres incapazes de expor seus sentimentos para os que lhe são iguais, sempre dispostos a ferir, a agredir, a machucar (com palavras e ações), mesmo que "sem querer". São seres auto-centrados, presos a suas próprias necessidades e dispostos a extrair do outro tudo o que for necessário para satisfazer o "eu". O mundo, e todos as pessoas e animais que o habitam, acabam por virar um grande self-service para satisfazer a necessidade desse eu reificado. 

HOMEM VELHO Um cigarro. 
MENINO Toma, ó não vou com a tua cara, te acho nojento, asqueroso, mas eu te se tu não dizer nada aos homê quando te encontrarem e perguntarem por mim. 
HOMEM VELHO Não digo nada não não não digo nada.

O texto foi escrito em 1991, antes da era dos smartphones (os "anos 10"), e já captou os sintomas do que viria a ser o senso comum do novo século: a busca incessante da felicidade no nível individual. Certo, talvez essa busca seja na verdade a busca da humanidade desde sempre, em todos os tempos e eras. Aliás, talvez seja também a busca de todos os animais. Como diz o Dalai Lama, todos os seres desejam ser felizes e escapar do sofrimento. E é exatamente isso que nos une, esse impulso inexplicável em busca de felicidade, por mais abstrato que esse sentimento possa ser. E qual o problema de querer ser feliz?

SENHOR Por que você não faz a comida? 
GAROTA Por que você se ama tanto papai? 

O que Carícias nos ajuda a enxergar é que esse querer ser feliz carrega um enorme risco de se transformar em cegueira. Eu quero a minha felicidade, e somente ela, independente das consequências dela para a felicidade do outro. O auto-centramento pode então ser levado a um nível de completa insensibilidade em relação as necessidades, anseios e desejos do outro. O outro só importa enquanto o que cabe a mim, só tem função se me é útil, só existe de fato se pode me dar prazer. Sua vida só é válida se for em concordância com a minha forma de viver. É o estado terminal da empatia, que sobrevive apenas através de suspiros esporádicos. Carícias revela que a empatia, essa incrível e inata (?) capacidade de perceber o outro, está em coma.

A perda da empatia - entendida aqui como a capacidade de partilhar e compreender os estados emocionais e mentais do outro e, de forma mais ampla, compreender os anseios,  as angústias, a lógica interna e a autonomia subjetiva do outro - se revela na peça pelo comportamento egoísta e violento das personagens, dispostos a ofender, humilhar e agredir para cumprir seus objetivos, despreocupados com as consequências de seus atos e palavras nos estados emocionais e mentais do outro, incapazes de ouvir e sentir aqueles que estão ao seu lado, mesmo que seja alguém que convive, ama (ou amou) e quer bem. 

HOMEM Adeus. 
GAROTA Você não tem nenhum motivo para chorar. Na verdade, ninguém percebeu nada. Ninguém sabe de nada. Ninguém me ouviu. Além do mais, ninguém se interessa, nem se importa com a sua desgraça. Muito menos os lixeiros da estação. Fica tranquilo. Esta buceta fedida e este mau hálito se despedem de você sem histerias nem gritos nem ataques de nervos nem ninguém que nos escute. 

Apesar dessa leitura um tanto quanto "pessimista", uma crítica a perda da empatia que parece se intensificar cada vez mais com a ajuda das novas tecnologias de comunicação (e seu sinistro sistema de algorítimos), não posso deixar de considerar o final do texto. Para mim, parte da "função" de uma dramaturgia (se é que lhe cabe alguma função, mas isso é uma outra discussão...), por mais crítica e cruel que seja, é apontar caminhos de esperança ativa, formas de ações construtivas e linhas de escape rumo a felicidade transcendental. Bebel opta por terminar com uma imagem poética, descrita em uma rubrica:

Lentamente, com muita delicadeza, a mulher passa um algodão molhada na água oxigenada no rosto do Homem Jovem. Em silêncio. Ele olha a mulher e se deixa curar por ela. Ela lhe seca cuidadosamente as gotas de água com o algodão seco. Ele relaxa e sorri. Ela lhe acaricia suavemente o cabelo. Ele pega a mão dela em sinal de agradecimento. Ela lhe beija a testa. Ele lhe beija a mão. Se olham nos olhos. (Dois seres estranhos parecem se encontrar.) O ar se torna cálido e sensual. As notas que estavam na mesa caem no chão. 


Os trechos citados são todos da peça "Carícias", de Sergi Bebel, 
com a tradução para o português de Christiane Jatahy.

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